sábado, 25 de janeiro de 2014

MOSTRANDO A CARA





ZERO HORA 25 de janeiro de 2014 | N° 17684

ARTIGOS

por Aline Doral Stefani Fagundes*




Impressionante o efeito que o carro tem sobre as pessoas. Dentro dele, todas as regras de etiqueta se transmudam, dando lugar a uma terra de bárbaros, onde tudo se justifica em nome da loucura do trânsito. Para começar, não é o trânsito que está louco. O que é o trânsito, senão nós mesmos? Assim como o engarrafamento: não estamos nele, nós somos ele.

Enganada pelo ponto cego do retrovisor, saí de uma vaga junto ao meio-fio sem perceber uma Kombi avançando na minha direção. O motorista – mais atento do que eu – freou bruscamente ao mesmo tempo em que colou a mão na buzina. Nada que eu não merecesse. Ciente da minha falha, segui até parar ao seu lado na sinaleira e abri o vidro para pedir desculpas. Ao me ver abrindo o vidro, e antes que eu pronunciasse qualquer palavra, o motorista me olhou enfurecido e rosnou agressivo: “O que é que foi?”. Encolhida, agradeci pela atenção e baixa velocidade dele, sem as quais teríamos colidido. No mesmo momento, a face vermelha de cenho enrugado deu lugar a um largo e doce sorriso: “Capaz! Não foi nada! Acontece!”. A minha bandeira de paz permitiu que ele visse o óbvio: de fato, acontece. E ainda bem que não foi nada mesmo. O motorista se postou em posição de combate porque a regra geral no trânsito é revidar com violência, com ou sem razão. O curioso é que as mesmas pessoas em um contexto equivalente, porém a pé, não teriam, via de regra, uma reação semelhante.

A internet também é palco de reações parecidas. Nada como poder clicar no botão de fechar para simplesmente encerrar uma conversa. Também é uma mágica fascinante deletar uma postagem desagradável, como uma versão virtual de um “cala boca”. Comentários rudes, então, saem com a mesma facilidade de quem declama um poema, pois dá para fazer tudinho sem olho no olho, sem ver os olhos brilhando, o nó se formando na garganta e sem ter que encarar o espanto de reprovação diante de tamanha descortesia. E se a matéria for futebol, o festival de coices é de dar inveja no mais pirracento dos quadrúpedes. É bem verdade, por outro lado, que a internet é uma mão danada na hora da cantada. Todo mundo vira Dom Juan, porque, na pior das hipóteses, vai ter que administrar a dor de um bloqueio. Nada mal.

E eu que achava que só o papel – no meu caso, os processos – promovia essa distância. Petições iniciais e contestações cravejadas de xingamentos dão lugar, na sala de audiências (nem sempre, é claro), a um formal e suave data venia. Nada como ter que mostrar a cara, sem estar protegido pelo carro, pela internet ou pelo processo.

Neste ano, desejo dirigir como se estivesse a pé e escrever como se estivesse falando. E desejo sempre lembrar que “obrigado”, “por favor”, “desculpa” e “com licença” persistem depois que a porta do carro se fecha.




*JUÍZA DO TRABALHO SUBSTITUTA

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