domingo, 6 de janeiro de 2013

SENSAÇÃO DE IMPUNIDADE

ZERO HORA 06 de janeiro de 2013 | N° 17304

CÓDIGO DE TRÂNSITO

Em vigor desde 22 de janeiro de 1998, Código de Trânsito Brasileiro prevê punições moderadas aos motoristas para crimes não intencionais, o que se torna um tormento para muitas famílias



O Código de Trânsito Brasileiro (CTB) completará 15 anos, este mês, sem conseguir colocar no caminho da prisão motoristas responsáveis por mortes em ruas e rodovias do país.

As punições moderadas previstas pela lei para os crimes não intencionais, passíveis de serem revertidas em penas alternativas, e a falta de uma regra clara para enquadrar os condutores que assumem o risco de matar ao dirigir de forma irresponsável fazem da cadeia uma exceção e ampliam a percepção de impunidade.

A sensação de que o homicídio praticado sobre rodas não resulta em castigo rigoroso é sustentada pelo retrato encontrado nas prisões. No Rio Grande do Sul, um levantamento realizado pela Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe) a pedido de ZH não conseguiu identificar nenhum condenado cumprindo pena por homicídio de trânsito no sistema prisional gaúcho no começo do mês passado.

Isso ocorre porque o CTB prevê detenção de dois a quatro anos para o homicídio culposo (sem intenção de matar) – condição que, pelo Código Penal, é convertida em pena alternativa se o réu cumprir requisitos como não ser reincidente em crime doloso (intencional). Basta pagar cestas básicas ou prestar algum tipo de serviço comunitário.

Para contornar a brandura da lei, casos envolvendo embriaguez, por exemplo, algumas vezes são enquadrados via Código Penal como homicídios com dolo eventual – quando o condutor adota uma conduta tão irresponsável que admite o risco de matar. O problema, nesse caso, é que essa interpretação não é unânime.

– O juiz pode ou não admitir o dolo eventual, e há vários filtros ao longo do processo em que o crime pode ser desclassificado para culposo – afirma o promotor de Justiça do Ministério Público Estadual Stéfano Lobato Kaltbach.

A expectativa de impunidade é um tormento a mais para famílias como a da moradora de Flores da Cunha Teresinha de Fátima Pedron e do socorrista Gilmar Lodeas, ambos de 49 anos. Em uma coincidência trágica, em outubro de 2011 Lodeas foi chamado para atender o acidente em que seu próprio filho, Fabiano Lodeas, morreu aos 22 anos. O rapaz estava em uma moto atingida por um carro cujo condutor apresentou 0,62 miligrama de álcool por litro de ar – suficiente para caracterização de crime.

– Até agora não houve nenhuma audiência. Enquanto isso, o motorista pagou fiança e está solto – afirma a mãe.

Gilmar conta que guarda uma foto do motorista em seu computador.

– Se um dia encontrá-lo na rua, não sei se não faço uma besteira – desabafa.

O desembargador do Tribunal de Justiça Nereu Giacomolli acredita que endurecer o castigo não é o melhor caminho:

– Precisamos de políticas educacionais, melhoria da sinalização, das rodovias. O problema não é simples.

O juiz aposentado Nei Pires Mitidiero, pioneiro na adoção do dolo eventual no Estado, acha que é hora de a lei mudar:

– Urge estabelecer-se, independentemente da condição de crime culposo, possível a aplicação de pena privativa de liberdade aos autores do crime de homicídio de trânsito.


ENTREVISTA

“A impunidade leva à irresponsabilidade”

Carlos Cateb/advogado especialista em trânsito



O advogado mineiro Carlos Cateb, especialista na área de trânsito, participou das discussões que levaram à elaboração do Código de Trânsito Brasileiro nos anos 1990. Para Cateb, a lei não alcança o efeito esperado pela população devido a problemas como a morosidade para o julgamento dos réus e o tamanho das penas previstas na legislação brasileira. Confira trechos da entrevista concedida por telefone a ZH:

Zero Hora – Por que é tão difícil prender quem mata no trânsito?

Carlos Cateb – Muitos crimes de trânsito prescrevem antes do julgamento no Brasil. Me parece haver uma insensibilidade no Judiciário brasileiro, ou relevam a segundo plano os crimes de trânsito, porque não aceito o argumento de que tem muito processo. No Brasil, a situação do trânsito é clamorosa e vergonhosa pelo número de pessoas que morrem a cada ano, e não tem ninguém preso.

ZH – Só o Judiciário é responsável por isso?

Cateb – Os governos estaduais também são responsáveis, porque o Judiciário reclama que tem muito processo e pouco juiz. Não são instaladas novas varas judiciais, são disponibilizadas verbas para um trabalho mais eficiente. Aqui em Minas há comarcas sem juiz há mais de ano. Cada juiz trabalha em média com 5 mil, 6 mil processos. Então não adianta dizer aos motoristas para pararem de correr, tem de dar estrutura.

ZH – Qual o prazo para prescrição desse tipo de crime?

Cateb – A prescrição varia conforme os atenuantes ou agravantes, se tinha ou não habilitação, se estava embriagado. O problema é que o Código de Trânsito, na época da sua elaboração, saiu da Câmara com uma punição razoável, mas foi atenuado no Senado. Tirou a possibilidade de tipificar o crime de trânsito como doloso. O tribunal do Rio Grande do Sul tem uma posição interessante. No Rio Grande do Sul, no Paraná, em Minas e em algum outro lugar se aceita o dolo eventual. Para mim, todo caso em que há homicídio ou lesão corporal grave e o motorista estiver embriagado tinha de ser enquadrado como dolo eventual.

ZH – Que mudanças são necessárias na lei?

Cateb – Tem de alterar a pena no Código de Trânsito, que hoje vai de dois a quatro anos para o crime normal (culposo). Com agravantes, como a embriaguez, equipararia ao homicídio no Código Penal, que vai a 20 anos de reclusão. Aí seria muito mais difícil prescrever. A impunidade é muito grande. Aqui em Minas, tivemos uns dois ou três que ficaram presos por um período. A certeza da impunidade leva à irresponsabilidade.

ZH – Mesmo quando há julgamento, é difícil que o criminoso fique preso. Por quê?

Cateb – Uma punição curta permite cumprir a pena em regime semiaberto, ou pagar 10 cestas básicas para compensar a vida de uma pessoa. Como o filho daquele ex-ministro gaúcho (Odacir Klein), que pagou cestas básicas (após atropelar e matar um pedreiro com o carro em que se encontrava acompanhado pelo pai, em 1996). Em um país sério, daria no mínimo 10 anos de cadeia. Temos de ter mais seriedade.


BALANÇO DO CTB - Confira alguns dos dispositivos da lei que ganharam espaço nas vias públicas – e outros que não conseguiram dar a partida:

PEGOU

Cerco ao álcool - Desde que entrou em vigor o novo código, a lei brasileira vem apertando o cerco à embriaguez ao volante. Em 2008, a chamada Lei Seca apertou a fiscalização. Porém, muitos condutores escapavam à fiscalização ao se negar a soprar o bafômetro. Este ano, foi sancionada uma nova norma que dobrou a multa por dirigir bêbado e passou a admitir outras provas, como vídeo e testemunhas, para configurar o crime.

Formação dos condutores - O processo de formação dos novos condutores ficou mais rigoroso. O curso teórico, com carga horária de 30 horas, incluiu noções de trânsito seguro, primeiros socorros e proteção ao ambiente. Além disso, se passar nos exames teórico e prático, o motorista recebe uma permissão para dirigir – que será substituída pela carteira definitiva apenas se não cometer infração grave, gravíssima, ou mais de uma infração média em um ano.

Uso do capacete - Até o CTB entrar em vigor, muitos motociclistas desprezavam o uso obrigatório do capacete. A nova lei multiplicou a multa pelo descumprimento da norma em quase quatro vezes e incluiu a suspensão do direito de dirigir como pena. Depois disso, o equipamento de segurança se tornou constante em ruas e rodovias.

NÃO PEGOU

Kit de primeiros socorros - Em 1999, uma resolução do Contran obrigou os motoristas a levarem um kit de primeiros socorros no carro. A embalagem continha materiais pouco úteis para atender uma vítima de acidente – e muito menos nas mãos de leigos. Depois de críticas, a determinação foi anulada.

Inspeção veicular - O CTB estabeleceu inspeção veicular de rotina a fim de checar itens de segurança e controlar a emissão de poluentes – mas ainda não virou realidade no país. No Estado, a medida esbarra na impopular cobrança de mais uma taxa para a oferta do serviço.

Multa para pedestre - Uma das iniciativas mais insólitas da nova lei prevê a possibilidade de aplicar multa a quem anda a pé. O pedestre que atravessa a via em local inadequado, por exemplo, deveria ser multado em 50% do valor de uma infração leve. O problema, ainda sem solução, é como aplicar a multa na prática.

Cinto no banco de trás - O uso do cinto de segurança nos bancos da frente dos carros disseminou-se. No de trás, onde é mais difícil verifica


COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - A maior causa de impunidade é a submissão do interesse público ao direito do individuo, um critério que salvaguarda os autores de ilicitudes e sacrifica a paz social e a segurança de todos no trânsito. Em países mais desenvolvidos, o direito do indivíduo vem depois do interesse público e da ordem pública. No Brasil, o interesse público é refém dos direitos e interesses individuais e corporativos.


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