domingo, 24 de junho de 2012

QUANDO O SOCORRO É NEGADO

ZERO HORA, 24 de junho de 2012 | N° 17110

FICA A DOR

De janeiro até 21 de junho deste ano, a Secretaria da Segurança Pública registrou 16 casos diários de motoristas que fugiram do local do acidente - LETÍCIA COSTA

Com 10 anos, Luiz Henrique Souza Pedone toma medicamentos para se acalmar e conseguir ter uma noite de sono tranquilo. Desde 16 de janeiro, ele tem medo de ficar sozinho e sente falta de seu maior companheiro: o irmão gêmeo Fábio Luiz Souza Pedone. Foi nesta data que um caminhão dobrou a esquina da Rua Luiz Araújo, no bairro Vila Norte, em Mostardas, município do sul do Estado, e atropelou Fábio pelas costas. A imprudência foi além e deixou marcada na memória de Luiz Henrique a cena do caminhão seguindo alguns metros, parando por um instante – para que o condutor olhasse pela janela – e acelerando novamente, até desaparecer na rua de areia.

Ao causar um acidente como esse e fugir do local, mais um motorista entra para uma extensa lista da Secretaria da Segurança Pública (SSP) gaúcha, que registrou de janeiro até 21 de junho deste ano 2.876 ocorrências (acidentes com ou sem vítimas fatais) desta espécie. Isso equivale a 16 fugas por dia, uma a cada 90 minutos.

Enquanto o motorista fugia do local do acidente em Mostardas, Luiz Henrique fazia uma tentativa desesperada de salvar Fábio. Carregando o irmão nas costas, queria dar o socorro rápido negado pelo caminhoneiro.

– O médico disse que, se o motorista tivesse socorrido, tinha salvado o Fábio. Não precisava ele (o motorista) dar socorro, era só chamar alguém. Por que não pediu socorro para alguém? – se pergunta a avó materna, Dorvalina Maria da Silva Souza, 42 anos, que criava o menino.

Desde então, toda semana, Dorvalina e Delma Teresinha da Silva Souza, 38 anos, tia-avó dos meninos, se revezam para ir até a delegacia da Polícia Civil de Mostardas. No caminho, a esperança de que haja alguma novidade.

Fábio é apenas um dos tantos exemplos em que o acidente com fuga de local resultou em morte. Nestes casos, a perda ganha um desagradável elemento extra. O fato de a vítima ter ficado mais tempo sem socorro, em função do causador do acidente não ter parado no momento, pode gerar uma consequência negativa para a recuperação dos familiares, explica a psicóloga Sinara Cristiane Tres Soares, presidente da Comissão de Trânsito do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul. O sofrimento se agrava, pois a família só consegue pensar que haveria como evitar a morte de quem tanto ama.

Aumento de 30% em dois anos

No mês em que Fábio foi atropelado, foram registradas 497 ocorrências de fuga de local de acidente no Estado. Em dois anos, a imprudência dos motoristas, que fogem da responsabilidade penal ou civil que o acidente impõe, aumentou 30% no mesmo período do ano.

Muitas vezes, o que fica para trás nas ruas e rodovias do Estado são apenas danos materiais, mas em tantas outras, ficam vidas, ou, o pouco que ainda restam delas, como no caso ocorrido em Mostardas. Com a ajuda de depoimentos, ainda que anônimos, e de câmeras de monitoramento, a polícia consegue alguma pista para chegar até o motorista.

– Sempre tem alguém que viu algo, só que, às vezes, a pessoa não quer vir à delegacia porque acha que vai se incomodar – afirma o delegado Gilberto Almeida de Montenegro, diretor da Divisão de Crimes de Trânsito do Departamento Estadual de Polícia Judiciária de Trânsito.

No caso de Fábio, a memória do irmão Luiz Henrique foi fundamental. Ele descreveu o veículo aos policiais.Dois dias depois do atropelamento, um veículo com as características apontadas por ele foi encontrado próximo a Osório. O responsável pela morte do menino ainda pode ser identificado.

– O motorista do caminhão foi encontrado, negou o envolvimento, mas o depoimento foi contraditório – disse o delegado Mário Mombach, responsável pelo caso na época.

O resultado da perícia no GPS – que pode apontar o trajeto feito pelo caminhão – é aguardado pela delegacia de Mostardas para que o inquérito possa ser concluído.

Motoristas devem ser responsáveis

Para a psicóloga Sinara Cristiane Tres Soares, existe uma tendência atual das pessoas não se responsabilizarem, de diversas formas, pelos seus atos.

– Podemos ter pessoas que costumam fugir de situações difíceis e que, novamente, tiveram este comportamento. Em vez de enfrentá-las, fogem, assim como fariam em outras ocasiões, para não ter de encarar as consequências. Mas também existem aquelas que estão muito assustadas com o resultado do ocorrido e não sabem como lidar, por isso acabam fugindo, pelo desespero – comenta a presidente da Comissão de Trânsito do Conselho Regional de Psicologia do Rio Grande do Sul.

O diretor-técnico do Departamento Estadual de Trânsito (Detran/RS), Ildo Mário Szinvelski, também acredita que o alto número de fugas esteja ligado à falta de responsabilidade e consciência das pessoas:

– É falta de civilidade, que reflete na atual forma de viver da sociedade.

Para ele, a aplicação da lei é a melhor forma de mostrar que a atitude não ficará impune.


Outros casos

2 de maio de 2012 - O ciclista Valdeci Silva de Araújo, 45 anos, foi atropelado por um veículo na zona norte da Capital. O motorista fugiu do local sem prestar socorro. A Polícia Civil aguarda imagens da câmera de monitoramento para tentar identificar o veículo e concluir o inquérito.

25 de fevereiro de 2011 - O motorista de um Golf atropela um grupo de ciclistas que participava da Massa Crítica – celebração da bicicleta como meio de transporte – na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Ele fugiu do local após ferir cerca de 17 pessoas. Cerca de oito horas depois, o motorista é identificado. Ricardo Neis, irá a júri popular e responderá por 17 tentativas de homicídio qualificado.

7 de abril de 2010 - Um menino indígena de seis anos morreu ao ser atropelado por um carro, enquanto caminhava às margens da rodovia ERS-500, em Constantina, no norte do Estado. Uma peça do veículo ficou no asfalto, mas a Polícia Civil não descobriu quem era o motorista que matou Eligian Larse. O inquérito não apontou o autor do homicídio culposo.

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