segunda-feira, 30 de maio de 2011

LEI SECA - EQUÍVOCO NO TEXTO GERA IMPUNIDADE

Equívoco no texto da Lei Seca gera impunidade - POR LUIZ FLÁVIO GOMES - CONSULTOR JURÍDICO. Colaborou com advogada Natália Macedo, pós graduanda em Ciências Penais e Pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes.

** Estamos enviando ao senador Pedro Taques mais uma proposta legislativa, que reputamos oportuna. O projeto tem por escopo alterar a redação prevista no artigo 306 da Lei 9.503/1997 (Código de Trânsito Brasileiro) a qual, em sua versão original, exige a concentração de álcool igual ou superior a 6 (seis) decigramas para a configuração do crime de dirigir alcoolizado ou sob a influência de substancia psicoativa.

Houve equívoco por parte dos legisladores ao determinar exigência de concentração mínima (igual ou superior a seis decigramas) de álcool para configurar o delito do artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro, sendo necessária alteração no texto legal.

Com a entrada em vigor da chamada “Lei Seca” (Lei 11.705/2008) e a consequente alteração do artigo 306 do CTB, pretendia-se tornar a legislação mais rigorosa no tocante aos crimes de embriaguez ao volante, porém, o que ocorreu foi justamente o oposto, flexibilizou-se a legislação infraconstitucional.

Isto porque, a exigência de 0,6 decigramas de álcool (ou qualquer outra substancia psicoativa), por litro de sangue, para a caracterização do crime vem gerando muita impunidade, tendo em vista que só há duas maneiras de se comprovar tal quantidade no sangue: pelo bafômetro ou por exame de sangue.

Quer dizer que, em ambos os casos, é necessária uma postura ativa do condutor e, como é cediço, ninguém é obrigado a fazer prova contra si mesmo (por força do princípio constitucional da não autoincriminação).

Desta forma, se o pretendido era tornar a legislação mais severa com os infratores, produziu-se um cenário de intensa impunidade.

Os números são ilustrativos: entre junho/08 e maio/09, constatou-se que 80% dos motoristas que se recusaram a se submeter ao teste do bafômetro ou realizar o exame de sangue, foram absolvidos ao final do processo[1].

A pesquisa, por si só, demonstra que a missão de enrijecer a legislação fracassou. Demonstrou-se que a previsão de quantia mínima para configuração do delito além de ineficaz, tornou a redação prejudicial, garantindo a impunidade dos condutores infratores.

Mas não para por aí.

Além de garantir a impunidade dos motoristas, a exigibilidade de concentração mínima de substância psicoativa no sangue, corrobora a 3ª colocação do Brasil no ranking mundial dos países que mais matam no trânsito.

Se tomarmos como exemplo o consumo de álcool, tem-se que sua ingestão, ainda que em quantidades relativamente pequenas, potencializa o risco de envolvimento em acidentes, tanto para condutores como para pedestres, já que sua concentração no sangue provoca a deterioração de funções indispensáveis à segurança ao volante, como a visão e os reflexos[2].

É o que ficou comprovado pelo respeitado estudo realizado em 1964, em Michigan, nos Estados unidos, denominado “Grand Rapids Study”[3], o qual demonstrou que condutores alcoolizados estão propensos a um risco muito maior de acidentes de trânsito que os motoristas com alcoolemia zero.

Por exemplo, se verificarmos a concentração de 0,04 g/100 ml de álcool no sangue, teremos que as probabilidades de fatalidades são 5 vezes superiores, quando comparado a uma alcoolemia zero. Da mesma maneira, uma alcoolemia de 0,24 g/100 ml de álcool no sangue significa um risco mais de 140 vezes superior ao risco com alcoolemia zero.
Assim, é imperioso que a exigência de quantidade mínima seja excluída de nossa legislação infraconstitucional, tendo em vista que sua previsão além de fomentar a impunidade, foi também um dos fatores responsáveis pela morte de 38.273 vítimas, apenas no ano de 2008[4].

Os dados são reais. Verificou-se que mesmo após a entrada em vigor da “Lei Seca” (20/06/08) houve um aumento de 2,3% nas fatalidades no trânsito (período de 2007 a 2008)[5].

Tal crescimento no número de fatalidades no trânsito só comprova o quanto é necessária a alteração na redação atual do artigo 306 do CTB, excluindo-se a necessidade de concentração mínima da taxa de alcoolemia ou outra substância psicoativa.

Se a experiência produzida pelo artigo 306 não foi positiva, soluções para este “morticídio” nacional viário se impõem!

É claro que não apenas alterações legislativas, mas um conjunto de medidas é necessário para verdadeiro plano nacional de segurança viária (a fórmula é: EEFPP: Educação, Engenharia, Fiscalização, Primeiros socorros e Punição), no entanto, iniciar com pequenas modificações, já é um grande passo para que vidas sejam poupadas (princípio magno do Sistema Nacional de Trânsito, conforme disposto no art. 5o da Lei 9.503/97).

Com a eliminação da taxa de alcoolemia do tipo penal, caberá sempre ao juiz analisar se o condutor dirigia ou não “sob a influência” do álcool ou outra substância. Na prática, o que revela estar sob essa “influência” é a condução anormal (zig-zag, ultrapassagem do sinal vermelho etc.).


[1] Pesquisa realizada pela Justiça Estadual de São Paulo em todo Brasil, matéria publicada na Folha de S. Paulo de 17.09.09, p. C7.
[2]Dados enunciados pela OMS – Organização Mundial de Saúde -http://whqlibdoc.who.int/publications/2007/9782940395088_por.pdf.
[3] Para verificar o estudo na íntegra, clique aqui: –http://whqlibdoc.who.int/publications/2007/9782940395088_por.pdf.
[4] Segundo dados do DATASUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) do Ministério da Saúde .
[5] Cálculos e análises realizadas pelos Instituto de Pesquisa Luiz Flavio Gomes (http://www.ipclfg.com.br), a partir dos dados do DATASUS (Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde) do Ministério da Saúde .

LUIZ FLÁVIO GOMES é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). É autor do Blog do Professor Luiz Flávio Gomes.

Nenhum comentário: