CAÇA A INFRATORES. Busca a motoristas gera controvérsia. O governo confirmou ontem que utilizará a Brigada Militar para intimar motoristas com habilitação suspensa a entregar o documento, medida que provocou reações contrárias - FRANCISCO AMORIM E MARCELO GONZATTO, ZERO HORA 28/05/2011
A determinação do governo estadual para que PMs batam à porta de mais de 7.336 mil motoristas com as habilitações suspensas, formalizada ontem, desperta controvérsia entre autoridades, juristas e representantes de associações de policiais.
A nova missão da Brigada Militar é levar notificações aos condutores que tiveram o direito de dirigir suspenso para que entreguem o documento em até 48 horas. Porém, críticos da medida acreditam que ela fere a Constituição e desvirtua o trabalho da polícia.
Além de argumentarem uma suposta inconstitucionalidade – os brigadianos não teriam competência legal para entregar notificações a domicílio –, os críticos da nova ofensiva contra a impunidade acreditam que a medida causará prejuízos ao policiamento nas ruas e constrangimento às famílias dos condutores que tiverem um PM fardado e armado batendo a sua porta.
Na cerimônia que selou o acordo entre Brigada Militar, Departamento Estadual de Trânsito (Detran) e Ministério Público (MP) no Palácio Piratini, ontem à tarde, representantes dessas instituições se dedicaram a rebater as críticas formuladas desde o começo do dia. Antes mesmo da assinatura do termo de cooperação técnica, que contou com a presença do vice-governador Beto Grill e permitirá a nova ação da BM, o presidente do Detran, Alessandro Barcellos, sustentou que a iniciativa é legal:
– A Brigada Militar é um agente de trânsito credenciado ao Detran, portanto essa é uma atividade administrativa possível de ser cumprida pela corporação. Essa ação também é um sinal de respeito a outros 2,5 mil condutores que estavam na mesma situação do que esses 7 mil, mas entregaram o documento após serem notificados por carta ou edital.
Vice-governador atenta para responsabilidade do condutor
Coordenador do Comitê Estadual pela Segurança no Trânsito, o vice-governador fez coro ao presidente do Detran sobre a importância da notificação pessoal como forma de coibir a impunidade:
– O cidadão tem que saber que será responsabilizado pela sua conduta – avaliou Grill.
Na avaliação do presidente da Associação dos Cabos e Soldados da Brigada Militar, Leonel Lucas, a nova função a ser desempenhada em 376 municípios gaúchos a partir da próxima segunda-feira e ao longo de dois meses é incompatível com a função policial.
Ele pretende solicitar uma audiência com o comando-geral da corporação para reverter essa medida.
– PM não é carteiro nem oficial de Justiça para fazer essa função.
O comandante-geral da Brigada, coronel Sérgio Abreu, observou que a ação tem caráter preventivo e não trará prejuízo ao desempenho dos PMs no patrulhamento cotidiano. O oficial explicou que os policiais aproveitarão a própria ronda do dia para fazerem as entregas nas casas localizadas nas imediações.
– Quem é contra a medida também acredita que um PM dando uma palestra em uma escola ou entregando um folder também está em desvio de função? E, afinal de contas, vamos bater na porta de quem já devia ter entregue a carteira e está descumprindo uma determinação administrativa – completa.
“Não há impedimento algum” - Eduardo Veiga, procurador-geral de Justiça.
Para o procurador-geral de Justiça, Eduardo de Lima Veiga, a ação é legal e ajudará a combater a impunidade.
Zero Hora – É um exagero um PM batendo na porta de um motorista com o direito de dirigir suspenso?
Eduardo de Lima Veiga – A finalidade dessa ação é que esses condutores entreguem a habilitação, o que já deviam ter feito, e passem pela reciclagem, caso queiram dirigir.
ZH – A nova atribuição não pode causar prejuízos ao combate do crime nas ruas?
Veiga – Não. A Brigada Militar, no curso normal de policiamento, vai aproveitar as casas que já estariam no roteiro para fazer as notificações. Com isso, se economiza bastante. E espera-se que esses condutores entreguem as carteiras. Os que não fizerem isso, em tese, poderão incorrer no crime de desobediência.
ZH – A denúncia neste caso do MP será compulsória?
Veiga – Cada caso é um caso diferente e que será apreciado pelo promotor em sua respectiva comarca. E isso poderá ser levado ao Judiciário, e cada juiz terá sua posição.
ZH – Há algum impedimento legal para a nova tarefa?
Veiga – Não há impedimento algum que o PM faça isso. Aliás, o que se precisa é que a pessoa seja notificada. Se a pessoa for notificada e não entregar, e agora eu te falo como promotor, eu aceitaria isso como prova de uma possível desobediência. Não há nada que impeça que isso seja feito por um policial militar, um secretário de diligência do Ministério Público, por um agente do Detran. O que precisamos é a prova incontroversa de que houve a notificação pessoal, que é uma notificação expedida pelo Detran para que ele devolva a carteira e passe pela reciclagem. Esperamos que as pessoas notificadas atendam ao chamado. Aqui não se trata de responsabilizar criminalmente, mas que as pessoas fiquem sem dirigir durante o período de sua reciclagem.
“Cidadão não pode ser enxovalhado” - Ricardo Giuliani, doutor em Direito
Para o doutor em Direito Ricardo Giuliani, professor de Direito Constitucional da Unisinos, a decisão de utilizar PMs para resgatar carteiras de motorista é inconstitucional. Confira a entrevista concedida por telefone:
ZH – Qual sua avaliação sobre a utilização da BM no recolhimento de carteiras?
Ricardo Giuliani – A medida é inconstitucional. Por dois motivos: fere o artigo 144, parágrafo 5º, o qual diz que a função das polícias estaduais é o policiamento ostensivo e a manutenção da ordem pública. A segunda inconstitucionalidade e, a meu ver, a mais importante, diz respeito ao inciso 5º do artigo 5º. Ele diz que a casa é o asilo inviolável do cidadão, e que o Estado não pode invadir a privacidade do cidadão salvo ordem judicial expressa.
ZH – Mas mesmo o fato de o policial apenas bater à porta de uma pessoa configuraria essa inconstitucionalidade?
Giuliani – Configura um constrangimento ilegal. Se baterem na tua porta, o que os vizinhos vão pensar? Será que é tóxico? O brigadiano trabalha uniformizado e armado. Ele é o Estado ostensivo. Essa medida tem o objetivo de constranger e isso é inconstitucional. Só o juiz pode.
ZH – O fato de a carteira estar suspensa não justifica essa ação?
Giuliani – Se o motorista já perdeu o direito de dirigir, o documento é morto. Não tem sentido a medida. O que me preocupa é o Estado agir sem ler a Constituição. Ela marca o padrão civilizatório que limita o poder do Estado sobre o cidadão. Começamos pela carteira de motorista. Amanhã o que vai ser? Isso lembra aquela prática de décadas atrás em que as cobranças de dívidas eram feitas por homens de vermelho. O objetivo era o constrangimento. Não tenho nada contra medidas para civilizar o trânsito, mas o cidadão não pode ser enxovalhado.
OUTRAS POLÊMICAS
CINTO DE SEGURANÇA - Ao longo dos últimos anos, ações das autoridades de trânsito resultaram em polêmica e tentativas de parte da sociedade de barrar as iniciativas. Obrigatório desde 1989 nas rodovias federais e desde 1998 em todas as vias do país, o uso do cinto de segurança nos veículos foi uma das maiores polêmicas nas últimas décadas. Para boa parte dos condutores, inicialmente a medida representava uma intromissão do Estado na intimidade do indivíduo. Aos poucos, porém, a lei “pegou”. Nos bancos traseiros, porém, ainda é comum encontrar passageiros sem a proteção.
FISCALIZAÇÃO ELETRÔNICA - A proliferação dos controladores eletrônicos de velocidade a partir dos anos 90 gerou tantas multas quanto reações divergentes. Embora parte dos condutores defenda a utilização da tecnologia como meio de evitar abusos, sempre houve críticas de que se prestariam mais a aumentar a arrecadação do que pacificar o trânsito. A pressão levou até as autoridades a revelarem a localização de controladores.
LEI SECA - A mudança no Código de Trânsito Brasileiro que instituiu a chamada tolerância zero ao álcool, em junho de 2008, foi recebida com polêmica. Entre as críticas mais comuns estavam a alegação de que alguns poucos goles de vinho em um jantar familiar, por exemplo, poderiam sujeitar o motorista a uma punição equivalente a de quem bebeu até mal conseguir andar.
USO DO BAFÔMETRO - Principal instrumento para medir com precisão o nível de alcoolemia dos motoristas, o uso do bafômetro ainda desperta controvérsia. Uma corrente entende que quem se recusa a soprar o instrumento não pode ficar sujeito a punição por isso, já que a Constituição prevê que ninguém é obrigado a produzir prova contra si mesmo.
REFORÇO NAS BLITZE - Por meio da operação Balada Segura, que procura flagrar motoristas bêbados ou em situação irregular, as blitze foram reforçadas no Estado. Porém, reações contrárias a essa medida levaram até à criação de perfis no twitter para avisar aos demais condutores em que locais da cidade estão sendo realizadas barreiras de fiscalização. Assim, o motorista pode escolher outra rota e driblar a lei.
Nenhum comentário:
Postar um comentário