segunda-feira, 22 de setembro de 2014

A JORNADA DOS SEM-AUTOMÓVEL




ZH 22 de setembro de 2014 | N° 17930


VINÍCIUS FERNANDES


MOBILIDADE MENOS MOTOR. NO DIA MUNDIAL SEM CARRO, Zero Hora mostra a rotina de pessoas que abriram mão do meio de transporte e adotaram alternativas mais sustentáveis mesmo que por apenas 24 horas


Já são quase 10 anos sem automóvel. Para o desenvolvedor de softwares Helton Moraes, 36 anos, é difícil traçar uma retrospectiva detalhada de 2004 para cá, mas hoje, no Dia Mundial sem Carro, lembra com felicidade da década em que declarou independência do motor. Apesar dos dias de chuva, das pedaladas cansativas e da hostilidade de muitos motoristas – que compõem o cenário de dificuldades dos que abrem mão do veículo individual –, Helton acredita que as pessoas não são tão dependentes do carro quanto imaginam ser.

Em sua casa, no bairro Bom Fim, vive com a mulher e o enteado. Ela vai para o trabalho de ônibus; ele, de bicicleta, e o menino caminha para a escola. Poderiam comprar um carro, mas, contrariando um dos principais argumentos dos defensores do transporte individual, acreditam ter mais liberdade não motorizados.

– Ter um carro implica gastar com garagem e combustível. Não é barato. Então a nossa pergunta número um foi: precisamos ter um carro? Pesou o fator logístico, que implica estacionar. E um acidente é uma despesa, é na verdade um custo psicológico – explica Helton, que só se rende ao automóvel para fazer viagens longas.

– Tu alugas o carro, ele está com a manutenção em dia, quando tu devolves te livras do problema – argumenta.

Em Porto Alegre, há um veículo para cada 1,9 habitante, segundo levantamento realizado pelo professor de transportes da UFRGS João Fortini Albano. O estudo também aponta que a Capital está na média dos grandes centros europeus, como França e Itália, e acima do índice nacional, de um veículo para cada 2,5 habitantes. Mas especialistas encontram otimismo na cultura da bicicleta, que cresce principalmente entre os jovens.

– A bicicleta tem muitas vantagens, e a cultura da modernidade, de sustentabilidade ambiental, marcha nesta direção. Vai encontrar resistências? Vai. Tem correntes muito radicais, o usuário do carro é muito cativo, mas eu acho reversível – pondera Albano.

Especial


Disposição para adaptar a rotina é fator determinante


BRUNA VARGAS


Quando comprou um carro, a jornalista Tatiana Roesler, 40 anos, acreditava que teria mais tempo com a primeira filha, então recém- nascida. Seis anos depois, com dois filhos não tão dependentes, morando perto da escola e a poucos quilômetros do trabalho, ela vive uma contradição: vem ganhando condições para deixar de usar o carro, mas percebe que se tornou dependente dele. A convite de ZH, a jornalista encarou o desafio proposto pelo Dia Mundial Sem Carro nesta segunda: passar um dia inteiro sem girar a chave.

Manhã

-Às 8h50min, Tatiana, Martina, seis anos, e Theo, quatro, vão a pé para a escola, a quatro quadras de casa.

– Já fizemos isso outras vezes, em dias de tempo bom. Eles adoram – comenta, sobre os pequenos.

-Às 9h, deixa a criançada e faz um pit stop na padaria: para sair de casa 10 minutos mais cedo, adiou o café.

-Após o lanche, Tatiana espera pelo ônibus que a deixa no escritório, no bairro Praia de Belas. Paga R$ 2,95 pela passagem e leva 14 minutos para percorrer o trajeto – de carro, no mesmo tempo a jornalista larga os filhos na escola e chega ao serviço.

-Tatiana faz as contas: para manter o carro, gasta R$ 60 semanais em gasolina e R$ 30 em lavagem, R$ 200 mensais em garagem, quase R$ 3 mil anuais entre seguro e IPVA.

– É um terceiro filho – reflete.

Tarde

-Sem carro, Tatiana almoça próximo ao trabalho e caminha até uma loja na Avenida da Azenha. Ela observa que se, de carro, precisa pensar previamente em rotas e locais para estacionar, sem ele tem de prever outras necessidades, como sacar dinheiro para a passagem e optar por sapatos e roupas mais confortáveis.

-Volta ao trabalho de ônibus. Na matemática da tarde, o transporte público sai na frente: de carro, teria pagado R$ 10 para estacionar.

Noite

-Tatiana costuma deixar o trabalho às 18h e buscar os filhos na escola, que funciona até as 19h.

-Desta vez, desce no meio do trajeto para sacar dinheiro e volta para a parada. O último coletivo do dia surge a menos de meia hora do fechamento da escolinha:

– Vou chegar lá e vão estar só os dois – angustia-se.

-Ao chegar à escola, às 18h50min, uma dúzia de crianças ainda brinca.

– Minha mãe está cansada – aponta Martina, certeira, a poucos metros de casa.

-Após um dia sem carro, a jornalista, que desistiu de se mudar para a Zona Sul para evitar o uso do carro, busca justificativas para manter o hábito:

– Acho que é preciso usá-lo de forma consciente, oferecendo carona, fazendo rotas alternativas e deixando na garagem sempre que possível.

-Os planos de erradicar o carro da vida da família não foram descartados. Mas, depois da experiência, devem ficar para mais tarde, segundo ela.

– Hoje, definitivamente, não seria possível – atesta.



Mais de R$ 60 por dia


De acordo com uma pesquisa produzida pela analista de Educação Financeira do Estúdio de Finanças da PUCRS Nahiane Pastro, o motorista porto- alegrense gasta R$ 60,91 por dia para ter um carro. O cálculo considerou um veículo de R$ 45 mil, que consome dois tanques de gasolina por mês. Foram contabilizadas despesas com estacionamento, seguro anual, depreciação do veículo, manutenção e IPVA.

Pensando em se libertar dos encargos financeiros que vêm de carona com o carro, André Snia, 31 anos, passou a levar a vida no ritmo das pedaladas. Locomover- se sobre duas rodas modelou seu dia a dia de tal maneira, que hoje trabalha com manutenção de bicicletas. Cruzar a Avenida Coronel Bordini com o filho de seis anos na cadeirinha acoplada à bike é parte da rotina. Há pelo menos 10 anos dividindo a via com veículos motorizados, André percebe um trânsito ainda mais intolerante e agressivo com os ciclistas.

– Os motoristas não nos respeitam nem um pouco. Sabem que o carro é mais forte e se aproximam da bicicleta – relata André, que, embora reconheça a importância da data, encara o 22 de setembro como um dia qualquer:

– Para nós dois, todo dia é Dia Mundial sem Carro.

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