terça-feira, 25 de março de 2014

MASSA FÚNEBRE

ZERO HORA 25 de março de 2014 | N° 17743


ARTIGOS

Por Lívia Araújo



Conceito estranho: o que é fechar vias que já vivem trancadas pelo menos três vezes ao dia? Não explica a matemática que o que anula o nulo vira positivo? Por isso, os ciclistas a quem se apontou que fecharam as ruas durante sua marcha fúnebre que chorou duas mortes horrendas, na verdade, não as terão aberto? Aberto às pessoas, à reflexão, aos pêsames inestancáveis que ainda escorrem das veias abertas da cidade.

É curioso perceber a dinâmica das ruas depois que um fato trágico acomete um ou vários ciclistas. Logo após o atropelamento da Massa Crítica, em fevereiro de 2011, além do receio inicial de pedalar que o trauma provocou nas testemunhas oculares daquele crime, a solidariedade de algumas pessoas se revezava com xingamentos pontuais de outras, dentro ou fora dos carros: ou roncavam um motor mais alto, ou cantavam pneus à proximidade da bicicleta, ou agouravam um novo atropelamento. Por incrível que pareça, na noite do protesto contra a violência endêmica que vitimou Patrícia e Daise, eu ouvi não poucas provocações de motoristas durante a marcha fúnebre que, vagarosa e cabisbaixa, passava pelas ruas de Porto Alegre, com o matraquear constante do helicóptero da televisão que flutuava sobre nossas cabeças, ensurdecendo nosso minuto de silêncio.

No dia seguinte, porque já havia vivido isso antes, eu sabia que parte da mídia nos acusaria de arruaceiros: mostraria, talvez, um desentendimento com algum motorista que tentava furar o protesto e passar por cima de alguns “desocupados”, como uma hostilização de ciclistas subversivos contra gente de bem que tentava voltar para casa.

Mas, ao contrário desses cidadãos, que ao final do protesto voltariam a trafegar pela Ipiranga nos mesmos 60 quilômetros por hora tão letais para a frágil estrutura de carne e osso, Patrícia e Daise nunca mais voltarão para casa. Também veremos comentaristas enraivecidos com a imprudência ciclística, apregoando o uso do capacete (que o Código de Trânsito sequer cita entre os itens de segurança obrigatórios) e quiçá até tornozeleiras e joelheiras como artigos indispensáveis para o ciclista verdadeiramente prudente: aquele que não se deixa matar, assim como a moça da minissaia não se deve deixar estuprar.

A efervescência motorizada e midiática, em tempos de linchamento público e pelourinhos modernos – mas isso não era coisa do século 19? – parece que odeia ainda mais os ciclistas depois que eles morrem, talvez porque isso, finalmente e dolorosamente, confronte cada um de nós com a parcela de culpa que temos pela barbárie do trânsito, em nossas pequenas infrações que, todos os anos, rendem 40 mil mortos no Brasil: um sinal vermelho furado, um copo a mais antes da chave do carro, a adrenalina de pisar fundo na reta da grande avenida, todos eles alimentando a indústria da multa, que não existiria se não fossem pelas infrações cometidas. Pois, em resposta, tenho uma má notícia: nenhum capacete nos protegerá da barbárie.

*Jornalista e integrante da Mobicidade – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta

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