ZERO HORA 30 de março de 2014 | N° 17748
ANDRÉ MAGS
MOBILIDADE ZH. Depois de três dias de pedaladas por ruas da Capital, repórter descreve os desafios enfrentados pelos usuários de bicicletas
Os ciclistas ainda são alienígenas tentando ser aceitos em Porto Alegre. Essa foi a frase que me veio à cabeça, após três dias percorrendo a Capital de Norte a Sul de bicicleta. Imagine se aparecessem óvnis por aqui e deles descessem ETs. Mesmo sendo do bem, ainda seriam ETs, talvez verdes ou com cabeções translúcidos, e respirando nosso rico oxigênio. Malditos. Os terráqueos jamais confiariam neles de primeira.
A frase nasceu depois que vi um taxista dando ré e quase derrubando meu colega Ricardo Duarte, fotógrafo desta pauta e que me acompanhou por mais de 30 quilômetros de pedaladas. Estávamos descendo a Borges de Medeiros, depois da Rua dos Andradas. Passado o susto, nos dirigimos para dialogar com o taxista, Airton Roberto Fraga de Souza, 53 anos. O apelido dele é Jesus. Imagino que seja por causa da barba e dos cabelos longos, outrora parecidos com os do Cristo e agora grisalhos ao estilo Papai Noel.
– O senhor viu que quase bateu no meu colega? – perguntei.
Antes que a boca de Jesus abrisse no meio da barba farta, um colega dele gritou.
– Ciclista só atrapalha!
– Quem é esse? – perguntei a Jesus.
O taxista respondeu que o colega estava brincando. Sei lá se estava. O cara tinha os olhos vidrados em nós. O principal é que não sorria, e quem brinca, sorri. Bem, esquecemos o cara e então Jesus se dedicou a minha primeira pergunta. Respondeu que não tinha visto a bike do Ricardo por causa do “ponto cego”. Quem fez autoescola sabe que o carro tem pontos cegos, é verdade. Ainda assim, achei que ele poderia ter visto a bici. Então, sugeriu que os ciclistas “andassem na linha no espelho do retrovisor dos carros para não deixarem de ser vistos”. Com essa, nos restou bater em retirada com nossa pele verde e nossos cabeções. O plano era embarcar no catamarã, trensurb e aeromóvel com as bikes.
Por telefone, um funcionário da Trensurb me explicou o porquê de haver horários determinados para entrar com bicicleta nos trens. Em fins de semana e feriados, é liberado. Em dias úteis, pode só das 9h30min às 11h, das 14h às 16h e das 21h às 23h20min.
– É para não prejudicar os outros usuários – disse, fazendo alusão aos horários de pico, quando os trens ficam lotados e bicicletas seriam um estorvo insuportável.
No trensurb, existe um local sinalizado para os ciclistas embarcarem, só que não vimos diferença alguma entre entrar por ali ou por qualquer outro ponto da estação. Tampouco achamos algum espaço para colocar as bicis. Assim que a primeira roda passou pela porta, os olhares se voltaram, curiosos, divertidos, mas também insistentes e questionadores. Na ida e na volta entre a Estação Mercado e o aeroporto Salgado Filho, transformamo-nos em alienígenas outra vez.
No barco da linha Porto Alegre-Guaíba, o pessoal parece acostumado à presença de ciclistas. As embarcações têm pequenos bicicletários na proa e os próprios funcionários amarram as bikes. Os passageiros nem estranham. Um segurança disse que já viu mais de 10 bicicletas embarcarem de uma só vez – acho que exagerou, há pouco espaço para tanto. O problema é o acesso por escadas desde o outro lado da Avenida Mauá até a estação, o que obriga a paletear a bike. No mais, é tranquilo. As bicicletas não ficam nem molhadas.
Nossa última ambição era viajar de aeromóvel com as bicicletas. Fui até um funcionário da Trensurb na Estação Aeroporto e perguntei se podia. A resposta:
– Sobe ali na estação e pergunta.
Assim fiz. O operador do aeromóvel bocejava quando lhe perguntei se podíamos entrar com as bikes. Ele autorizou:
– Com educação, tudo bem, podem entrar. Não tem nada dizendo que não pode.
Então, fizemos o rápido trajeto, ida e volta. O tempo inteiro, sob olhares curiosos. Fazia sentido, naquele cenário. Estávamos em uma nave futurista e éramos de outro planeta, rumo ao futuro, onde deve estar a tolerância.”
Faixa exclusiva não é sinal de segurança
Na ciclovia da Avenida Ipiranga há uma sensação de segurança por causa dos guarda-corpos e, apesar de incompleta, a via é longa e muito utilizada. No entanto, os cruzamentos com as ruas são perigosos porque ainda há motorista que fura o sinal e ciclista que não respeita o seu semáforo – é preciso ter paciência porque tem sinaleira para bicicleta que demora minutos intermináveis, enquanto o verde pode durar cerca de escassos 10 segundos. Também há obstáculos, como postes e árvores, muitas vezes no meio do caminho. Além de se chocar contra eles, os ciclistas podem bater em quem pedala no sentido contrário.
O pior, porém, é quando pedestres cruzam a ciclovia. Não há via de escape por causa dos guarda-corpos e quem caminha ali pode se machucar feio porque a velocidade das bicicletas muitas vezes é alta. Quem está sobre uma bici também pode se dar mal. O Ricardo Duarte poderia ter voltado sem um pé da bicicletada porque um trabalhador que cortava grama com uma máquina quase o atingiu. Tomou um susto ao ver que o cortador passou a centímetros do pedal do fotógrafo. Na ciclofaixa da José do Patrocínio (foto), é costume os pedestres nem olharem para os lados quando a atravessam.
Lugar de pedestre e lugar de bike
Na Esquina Democrática, a morte se movia com a tradicional foice em mãos, mas nada de assustar a gurizada que aprendia a atravessar uma faixa de segurança de brinquedo montada por azuizinhos. Interrompi brevemente a atividade educativa da EPTC e perguntei a uma fiscal se poderíamos pedalar pela Rua dos Andradas. Ela não sabia. Chamou um colega. Ele confirmou:
– Só desmontado.
É engraçado isso. Logo adiante fica a ciclofaixa da Rua Sete de Setembro (foto). Ali, o que mais se vê é gente caminhando na pista. As pessoas nem sequer olham para trás para ver se vem alguma bike. Na esquina com a Praça da Alfândega, avistamos uma moça caminhando sobre a ciclofaixa. Percorreu-a em um longo trecho. Eu a abordei.
– Por que você estava caminhando na ciclofaixa, se é exclusiva a ciclistas?
– Sempre vou pela ciclofaixa para ultrapassar as pessoas que estão na calçada, que às vezes vão devagar – respondeu.
Ela costuma andar de bike e concorda que não pode ficar na ciclofaixa. A pressa, porém, costuma falar mais alto.
Carência de bicicletários
Bicicletário é artigo raro na Capital. Quando o Ricardo Duarte e eu fomos almoçar na Casa de Cultura, por exemplo, acorrentamos as bikes aos pilares das obras de restauração do prédio. Sempre soube que no Praia de Belas Shopping tinha um bicicletário muito bom. Imaginava que ficava no entorno do prédio principal. Andamos em frente do shopping, pela Praia de Belas, e nada, nenhum aviso. Aí, interpelei um guarda.
– É no outro prédio, do outro lado da rua. Tem que entrar na saída da garagem – disse ele.
Repare só, “entrar na saída”. É o destino dos ciclistas, ser colocado onde dá, mesmo que seja com acesso no contrafluxo. Lá encontramos a arquiteta Clarissa Garcia, 27 anos (foto). Ela aprova e usa seguidamente o bicicletário. No BarraShoppingSul, também não há placas indicando onde fica o bicicletário.
– Melhor vocês descerem da bicicleta e irem levando na mão. Os motoristas aqui são muito mal-educados – recomendou um segurança.
Já na Fundação Iberê Camargo custa R$ 2 deixar a bike no bicicletário do estacionamento subterrâneo. Outra opção é deixar nos fundos do prédio, de graça.
Fora das ciclovias, pedalar é dureza
A Avenida Protásio Alves é o inferno no asfalto. Se você é ciclista, evite-a. A sensação é de risco de atropelamento o tempo inteiro. O Ricardo Duarte entrou no clima de tensão e, quando chegava ao meio de uma quadra, já sinalizava com a mão que passaria pela próxima esquina.
Por outras vias, como a Avenida Loureiro da Silva (foto) não é tão diferente. A arquiteta Clarissa Garcia, 27 anos, já foi xingada por não estar na ciclovia da Ipiranga, e sim ocupando espaço no asfalto, onde tem o direito de estar, em um trajeto desde o Jardim Botânico.
– “Depois eu te mato, passo por cima de ti”, disse o motorista – lembra.
Depois das mortes recentes de duas ciclistas, atropeladas por ônibus, o medo engessou alguns ciclistas. Usar a calçada é uma irregularidade, porém essa tem sido a medida tomada por vezes pela estudante de Administração da UFRGS Tainá Hennig, 23 anos. O medo a atrai para os passeios públicos, e ela tenta manter baixa velocidade e cuidado para não atingir algum pedestre, e chega a descer e levar a bicicleta a pé – o que é permitido por lei.
– Não quero virar estatística – argumenta.
Cicloativista ao volante de ônibus
Se um dia você, ciclista, topar com um ônibus da linha T4 no seu caminho, torça para ser o de Emerson Jesus de Lemos (foto), 51 anos. Ele foge do padrão dos motoristas porque é cicloativista e costuma integrar os protestos da Massa Crítica. Portanto, qualquer bicicleta ao redor dele receberá a máxima atenção. O mesmo não acontece com alguns colegas de Jesus, que, ele lamenta, são mais descuidados.
– O que eu digo a eles é que é mais fácil perder uns minutos protegendo o ciclista do que arranjar incomodação para o resto da vida. É possível fazer isso porque não somos punidos por chegarmos mais tarde à garagem, já há atrasos por causa dos congestionamentos – explica.
Jesus, como é chamado, trabalha há 10 anos na Carris e chega todo dia de bicicleta à garagem da empresa junto ao Hipódromo do Cristal, na Zona Sul.
Na noite de sexta-feira, ele estava com parte de sua família – a mulher e uma das duas filhas – na Massa Crítica que protestou contra a morte das duas ciclistas, a estudante e Pedagogia Patrícia Silva de Figueiredo, 21 anos, e a estudante de Psicologia Daise Duarte Lopes, 19 anos. Às 19h35min, deram a primeira pedalada.
Carrocentrismo ainda vigora
Em frente ao bar Opinião, onde um ponto de taxistas foi extinto para passar uma ciclofaixa, há profissionais que mal podem ver uma bike na sua frente. Um taxista com quem falei resumiu os ciclistas a pessoas que “atrapalham o trânsito” e “provocam os motoristas”. Outro taxista, Olvair Santos (foto), 57 anos, defendeu os ciclistas. Suas opiniões sobre a cidade, porém, colocavam o carro no centro das prioridades. Ele apontava para a avenida em frente ao seu ponto enquanto falava.
– Todas as ruas tinham de ser como a Borges de Medeiros. Olha só como ela é larga. E não como a José do Patrocínio, que ficou estreita (por causa da ciclovia).
Integrante do Mobicidade, coletivo dedicado ao cicloativismo, Cadu Carvalho defende a multiplicação das bicicletas como a melhor forma de desenvolver uma cultura desse meio de transporte. A simples observação das magrelas indo e voltando livres de congestionamentos pode influenciar um motorista a abandonar o uso diário do carro, diz ele.
Cadu destaca a importância das campanhas de educação no trânsito para mudar concepções rapidamente.
– O nosso trânsito é muito hostil – afirma o cicloativista.
FOTOS RICARDO DUARTE
MOBILIDADE ZH. Depois de três dias de pedaladas por ruas da Capital, repórter descreve os desafios enfrentados pelos usuários de bicicletas
Os ciclistas ainda são alienígenas tentando ser aceitos em Porto Alegre. Essa foi a frase que me veio à cabeça, após três dias percorrendo a Capital de Norte a Sul de bicicleta. Imagine se aparecessem óvnis por aqui e deles descessem ETs. Mesmo sendo do bem, ainda seriam ETs, talvez verdes ou com cabeções translúcidos, e respirando nosso rico oxigênio. Malditos. Os terráqueos jamais confiariam neles de primeira.
A frase nasceu depois que vi um taxista dando ré e quase derrubando meu colega Ricardo Duarte, fotógrafo desta pauta e que me acompanhou por mais de 30 quilômetros de pedaladas. Estávamos descendo a Borges de Medeiros, depois da Rua dos Andradas. Passado o susto, nos dirigimos para dialogar com o taxista, Airton Roberto Fraga de Souza, 53 anos. O apelido dele é Jesus. Imagino que seja por causa da barba e dos cabelos longos, outrora parecidos com os do Cristo e agora grisalhos ao estilo Papai Noel.
– O senhor viu que quase bateu no meu colega? – perguntei.
Antes que a boca de Jesus abrisse no meio da barba farta, um colega dele gritou.
– Ciclista só atrapalha!
– Quem é esse? – perguntei a Jesus.
O taxista respondeu que o colega estava brincando. Sei lá se estava. O cara tinha os olhos vidrados em nós. O principal é que não sorria, e quem brinca, sorri. Bem, esquecemos o cara e então Jesus se dedicou a minha primeira pergunta. Respondeu que não tinha visto a bike do Ricardo por causa do “ponto cego”. Quem fez autoescola sabe que o carro tem pontos cegos, é verdade. Ainda assim, achei que ele poderia ter visto a bici. Então, sugeriu que os ciclistas “andassem na linha no espelho do retrovisor dos carros para não deixarem de ser vistos”. Com essa, nos restou bater em retirada com nossa pele verde e nossos cabeções. O plano era embarcar no catamarã, trensurb e aeromóvel com as bikes.
Por telefone, um funcionário da Trensurb me explicou o porquê de haver horários determinados para entrar com bicicleta nos trens. Em fins de semana e feriados, é liberado. Em dias úteis, pode só das 9h30min às 11h, das 14h às 16h e das 21h às 23h20min.
– É para não prejudicar os outros usuários – disse, fazendo alusão aos horários de pico, quando os trens ficam lotados e bicicletas seriam um estorvo insuportável.
No trensurb, existe um local sinalizado para os ciclistas embarcarem, só que não vimos diferença alguma entre entrar por ali ou por qualquer outro ponto da estação. Tampouco achamos algum espaço para colocar as bicis. Assim que a primeira roda passou pela porta, os olhares se voltaram, curiosos, divertidos, mas também insistentes e questionadores. Na ida e na volta entre a Estação Mercado e o aeroporto Salgado Filho, transformamo-nos em alienígenas outra vez.
No barco da linha Porto Alegre-Guaíba, o pessoal parece acostumado à presença de ciclistas. As embarcações têm pequenos bicicletários na proa e os próprios funcionários amarram as bikes. Os passageiros nem estranham. Um segurança disse que já viu mais de 10 bicicletas embarcarem de uma só vez – acho que exagerou, há pouco espaço para tanto. O problema é o acesso por escadas desde o outro lado da Avenida Mauá até a estação, o que obriga a paletear a bike. No mais, é tranquilo. As bicicletas não ficam nem molhadas.
Nossa última ambição era viajar de aeromóvel com as bicicletas. Fui até um funcionário da Trensurb na Estação Aeroporto e perguntei se podia. A resposta:
– Sobe ali na estação e pergunta.
Assim fiz. O operador do aeromóvel bocejava quando lhe perguntei se podíamos entrar com as bikes. Ele autorizou:
– Com educação, tudo bem, podem entrar. Não tem nada dizendo que não pode.
Então, fizemos o rápido trajeto, ida e volta. O tempo inteiro, sob olhares curiosos. Fazia sentido, naquele cenário. Estávamos em uma nave futurista e éramos de outro planeta, rumo ao futuro, onde deve estar a tolerância.”
Faixa exclusiva não é sinal de segurança
Na ciclovia da Avenida Ipiranga há uma sensação de segurança por causa dos guarda-corpos e, apesar de incompleta, a via é longa e muito utilizada. No entanto, os cruzamentos com as ruas são perigosos porque ainda há motorista que fura o sinal e ciclista que não respeita o seu semáforo – é preciso ter paciência porque tem sinaleira para bicicleta que demora minutos intermináveis, enquanto o verde pode durar cerca de escassos 10 segundos. Também há obstáculos, como postes e árvores, muitas vezes no meio do caminho. Além de se chocar contra eles, os ciclistas podem bater em quem pedala no sentido contrário.
O pior, porém, é quando pedestres cruzam a ciclovia. Não há via de escape por causa dos guarda-corpos e quem caminha ali pode se machucar feio porque a velocidade das bicicletas muitas vezes é alta. Quem está sobre uma bici também pode se dar mal. O Ricardo Duarte poderia ter voltado sem um pé da bicicletada porque um trabalhador que cortava grama com uma máquina quase o atingiu. Tomou um susto ao ver que o cortador passou a centímetros do pedal do fotógrafo. Na ciclofaixa da José do Patrocínio (foto), é costume os pedestres nem olharem para os lados quando a atravessam.
Lugar de pedestre e lugar de bike
Na Esquina Democrática, a morte se movia com a tradicional foice em mãos, mas nada de assustar a gurizada que aprendia a atravessar uma faixa de segurança de brinquedo montada por azuizinhos. Interrompi brevemente a atividade educativa da EPTC e perguntei a uma fiscal se poderíamos pedalar pela Rua dos Andradas. Ela não sabia. Chamou um colega. Ele confirmou:
– Só desmontado.
É engraçado isso. Logo adiante fica a ciclofaixa da Rua Sete de Setembro (foto). Ali, o que mais se vê é gente caminhando na pista. As pessoas nem sequer olham para trás para ver se vem alguma bike. Na esquina com a Praça da Alfândega, avistamos uma moça caminhando sobre a ciclofaixa. Percorreu-a em um longo trecho. Eu a abordei.
– Por que você estava caminhando na ciclofaixa, se é exclusiva a ciclistas?
– Sempre vou pela ciclofaixa para ultrapassar as pessoas que estão na calçada, que às vezes vão devagar – respondeu.
Ela costuma andar de bike e concorda que não pode ficar na ciclofaixa. A pressa, porém, costuma falar mais alto.
Carência de bicicletários
Bicicletário é artigo raro na Capital. Quando o Ricardo Duarte e eu fomos almoçar na Casa de Cultura, por exemplo, acorrentamos as bikes aos pilares das obras de restauração do prédio. Sempre soube que no Praia de Belas Shopping tinha um bicicletário muito bom. Imaginava que ficava no entorno do prédio principal. Andamos em frente do shopping, pela Praia de Belas, e nada, nenhum aviso. Aí, interpelei um guarda.
– É no outro prédio, do outro lado da rua. Tem que entrar na saída da garagem – disse ele.
Repare só, “entrar na saída”. É o destino dos ciclistas, ser colocado onde dá, mesmo que seja com acesso no contrafluxo. Lá encontramos a arquiteta Clarissa Garcia, 27 anos (foto). Ela aprova e usa seguidamente o bicicletário. No BarraShoppingSul, também não há placas indicando onde fica o bicicletário.
– Melhor vocês descerem da bicicleta e irem levando na mão. Os motoristas aqui são muito mal-educados – recomendou um segurança.
Já na Fundação Iberê Camargo custa R$ 2 deixar a bike no bicicletário do estacionamento subterrâneo. Outra opção é deixar nos fundos do prédio, de graça.
Fora das ciclovias, pedalar é dureza
A Avenida Protásio Alves é o inferno no asfalto. Se você é ciclista, evite-a. A sensação é de risco de atropelamento o tempo inteiro. O Ricardo Duarte entrou no clima de tensão e, quando chegava ao meio de uma quadra, já sinalizava com a mão que passaria pela próxima esquina.
Por outras vias, como a Avenida Loureiro da Silva (foto) não é tão diferente. A arquiteta Clarissa Garcia, 27 anos, já foi xingada por não estar na ciclovia da Ipiranga, e sim ocupando espaço no asfalto, onde tem o direito de estar, em um trajeto desde o Jardim Botânico.
– “Depois eu te mato, passo por cima de ti”, disse o motorista – lembra.
Depois das mortes recentes de duas ciclistas, atropeladas por ônibus, o medo engessou alguns ciclistas. Usar a calçada é uma irregularidade, porém essa tem sido a medida tomada por vezes pela estudante de Administração da UFRGS Tainá Hennig, 23 anos. O medo a atrai para os passeios públicos, e ela tenta manter baixa velocidade e cuidado para não atingir algum pedestre, e chega a descer e levar a bicicleta a pé – o que é permitido por lei.
– Não quero virar estatística – argumenta.
Cicloativista ao volante de ônibus
Se um dia você, ciclista, topar com um ônibus da linha T4 no seu caminho, torça para ser o de Emerson Jesus de Lemos (foto), 51 anos. Ele foge do padrão dos motoristas porque é cicloativista e costuma integrar os protestos da Massa Crítica. Portanto, qualquer bicicleta ao redor dele receberá a máxima atenção. O mesmo não acontece com alguns colegas de Jesus, que, ele lamenta, são mais descuidados.
– O que eu digo a eles é que é mais fácil perder uns minutos protegendo o ciclista do que arranjar incomodação para o resto da vida. É possível fazer isso porque não somos punidos por chegarmos mais tarde à garagem, já há atrasos por causa dos congestionamentos – explica.
Jesus, como é chamado, trabalha há 10 anos na Carris e chega todo dia de bicicleta à garagem da empresa junto ao Hipódromo do Cristal, na Zona Sul.
Na noite de sexta-feira, ele estava com parte de sua família – a mulher e uma das duas filhas – na Massa Crítica que protestou contra a morte das duas ciclistas, a estudante e Pedagogia Patrícia Silva de Figueiredo, 21 anos, e a estudante de Psicologia Daise Duarte Lopes, 19 anos. Às 19h35min, deram a primeira pedalada.
Carrocentrismo ainda vigora
Em frente ao bar Opinião, onde um ponto de taxistas foi extinto para passar uma ciclofaixa, há profissionais que mal podem ver uma bike na sua frente. Um taxista com quem falei resumiu os ciclistas a pessoas que “atrapalham o trânsito” e “provocam os motoristas”. Outro taxista, Olvair Santos (foto), 57 anos, defendeu os ciclistas. Suas opiniões sobre a cidade, porém, colocavam o carro no centro das prioridades. Ele apontava para a avenida em frente ao seu ponto enquanto falava.
– Todas as ruas tinham de ser como a Borges de Medeiros. Olha só como ela é larga. E não como a José do Patrocínio, que ficou estreita (por causa da ciclovia).
Integrante do Mobicidade, coletivo dedicado ao cicloativismo, Cadu Carvalho defende a multiplicação das bicicletas como a melhor forma de desenvolver uma cultura desse meio de transporte. A simples observação das magrelas indo e voltando livres de congestionamentos pode influenciar um motorista a abandonar o uso diário do carro, diz ele.
Cadu destaca a importância das campanhas de educação no trânsito para mudar concepções rapidamente.
– O nosso trânsito é muito hostil – afirma o cicloativista.
FOTOS RICARDO DUARTE