sábado, 21 de setembro de 2013

BEBER E DIRIGIR






ZERO HORA 21 de setembro de 2013 | N° 17560

ANDRÉ MAGS

O desafio de tratar o álcool como doença

Pesquisa analisa mais de 12 mil flagrantes a condutores embriagados ocorridos nos anos de 2009 e 2010 e mostra que parte dos casos é composta por pessoas que já haviam sido pegas por embriaguez ao volante


No embalo da Semana Nacional de Trânsito, que vai até o dia 25, o Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS) divulgou um estudo inédito sobre condutores flagrados mais de uma vez no Rio Grande do Sul ao dirigir sob o efeito de álcool – a embriaguez ao volante é justamente o tema da campanha deste ano.

Ao traçar o perfil desses motoristas, a pesquisa leva a refletir sobre a impunidade diante do repetido desrespeito à lei e sobre o papel do Estado: afinal, condutores dependentes de álcool não deveriam ser encaminhados para tratamento?

Os 12.204 casos de flagrante a motoristas embriagados ocorridos no Estado entre 2009 e 2010 foram objeto de estudo no trabalho de mestrado da psicóloga Aurinez Rospide Schmitz, dentro do programa de pós-graduação de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A orientação foi do coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Trânsito e Álcool da universidade, Flavio Pechansky, e contou com o apoio do Detran.

O perfil do reincidente mostra que 538 condutores foram flagrados entre duas e quatro vezes durante os dois anos do estudo sob influência de álcool ou algum entorpecente. A conclusão do levantamento aponta uma maior probabilidade de diagnóstico de transtorno de dependência de álcool entre essas pessoas.

– Não conseguimos averiguar nos nossos condutores se realmente se confirma (que eram dependentes de alguma substância). Agora, a literatura em trabalhos já realizados em outros países mostra que motoristas reincidentes nesse tipo de infração têm uma probabilidade maior de ter um transtorno por uso de álcool e outras comorbidades psiquiátricas – explica Aurinez.

A repetição dos flagrantes demonstra que os motoristas não estão sendo coibidos no Brasil. Em outros países, é mais frequente que as autoridades acompanhem, punam e encaminhem para tratamento os condutores dependentes de álcool. Além disso, o testemunho de policiais basta como prova de embriaguez. Há também dispositivos que buscam controlar e prevenir reincidências. Nos Estados Unidos e em países europeus, por exemplo, veículos equipados com bafômetros impedem a ignição se o motorista estiver bêbado.

– No Brasil, a prova depende do juiz, do advogado, da forma como foi colhida. A nossa cultura é flexível. Em outros países, busca-se cobrir por vários ângulos o motorista perigoso. Ou ele é retirado da estrada ou terá de se comportar – aponta Pechansky.

Pesquisa deve servir para melhorar a lei

Um problema chamou a atenção de Aurinez e Pechansky durante os trabalhos: a falta de dados para compor uma estatística completa e confiável sobre acidentes e infrações de trânsito no país.

– Por exemplo, em muitos departamentos médicos legais não existem equipamentos para fazer exames de sangue nos motoristas – diz Pechansky. – Há uma subdocumentação na parte do beber e dirigir e a estatística que temos no trânsito é subnotificada.

O diretor-presidente do Detran-RS, Leonardo Kauer, confirma o problema:

– A estatística de trânsito no Brasil é absolutamente furada. As metodologias utilizadas para identificar os acidentes não obedecem ao que preconiza a Organização Mundial de Saúde, que é contabilizar as mortes até 30 dias após o acidente. O único Estado que considera isso é o nosso.

Kauer ainda não se debruçou sobre os dados, mas, com base em informações primárias do trabalho de Aurinez, ele acha possível sugerir ao Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) melhorias na legislação que incluam, por exemplo, a chance de tratar um motorista dependente de álcool. Atualmente, o Detran-RS lida com um estoque acumulado de 5 mil processos de cassação e suspensão do direito de dirigir. Para agilizar os procedimentos, foi criada uma divisão especializada nesses processos.

O Detran também busca a integração com sistemas de outras áreas, como segurança e saúde. A parceria serviria para acompanhar dados de pacientes de acidentes internados, por exemplo. Hoje, as informações sobre a situação de vítimas do trânsito são coletadas por telefone.


Jovens representam maior risco

Aurinez Rospide Schmitz e Flavio Pechansky lembram que os motoristas reincidentes representam um problema grave de saúde pública, mas os jovens bebedores ocasionais são mais perigosos no trânsito. Eles praticam o chamado binge drinking, como é conhecido o costume de tomar altas quantidades de álcool em pouco tempo nos Estados Unidos. O problema é que, diferentemente dos dependentes de álcool, que são mais velhos, os jovens têm ainda mais dificuldade em estipular um limite para a bebedeira e sua experiência de trânsito é menor. Por isso, os adeptos do binge drinking levam mais perigo às ruas e às estradas do que os alcoolistas veteranos.

– O problema mais frequente entre os motoristas que bebem não é o alcoolismo e sim a violência e os acidentes de trânsito. O bebedor episódico, por exemplo, é o que causa mais acidentes – afirma o médico especialista em dependência química Sérgio de Paula Ramos.

Foi devido ao número expressivo de acidentes à noite e durante a madrugada envolvendo jovens e relacionados ao consumo de álcool que o Detran criou a operação Balada Segura. Por meio da operação, Detran, Brigada Militar, órgãos municipais de trânsito e outras entidades realizam blitze para retirar das ruas os condutores embriagados.

Ao se comparar os verões de 2012 e 2013, fica evidente o recrudescimento das blitze no Rio Grande do Sul. Em janeiro e fevereiro de 2012, 6.320 veículos foram parados. Este ano, esse número passou para 10.979 no mesmo período, um aumento de 73,7%.


Treinamento de policiais para obter provas


O Brasil ainda está em uma fase anterior em relação aos países mais desenvolvidos na legislação de trânsito e sua aplicação, lembra Pechansky. Ainda se discute a validade e a legalidade de se implantar determinados mecanismos de controle e punição dos motoristas alcoolizados.

A questão do depoimento policial como prova da embriaguez do condutor, por exemplo, é um dos aspectos mais discutidos. Quanto aos alcoólatras, a vantagem nos países de legislação mais avançada é que muitas vezes se oferece a opção do tratamento, que pode também ser compulsório.

O Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (Cpad), localizado no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e sob a direção de Pechansky, já treinou 3 mil policiais rodoviários brasileiros para capacitá-los na identificação e no registro mais apurado de casos de embriaguez ao volante, possibilitando a obtenção de provas mais robustas.

Outros 2 mil deverão passar pelo curso, em uma parceria com o governo federal. Em 10 e 11 de outubro, o Simpósio Internacional sobre Drogas, Álcool e Trânsito (Sidat) debaterá esse mesmo assunto, reunindo especialistas do Brasil e Exterior na capital gaúcha.


QUANDO É DEPENDÊNCIA

A medicina trabalha com critérios para diagnosticar casos de dependência de qualquer tipo de droga
- Essa inovação no diagnóstico ocorreu na década de 1980 e pode ser aplicada em qualquer indivíduo. 

Alguns desses critérios são:


PERDA DE CONTROLE - Desejo incontrolável de consumo.

TOLERÂNCIA - Necessidade de consumir doses maiores para obter o mesmo efeito de quando se bebia doses menores.

SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA -  Surgimento de sintomas físicos e psíquicos quando o consumo é reduzido ou interrompido.

TENTATIVA DE EVITAR A SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA - Busca pela bebida para não sentir os sintomas da abstinência.

CONSUMO DE BAIXO RISCO - Consumo de baixo risco é aquele cuja ingestão de determinadas quantidades de álcool que não causa dependência. Para os homens, essa quantidade significa 14 doses por semana e não mais que quatro doses por ocasião. Já para as mulheres, 12 doses por semana e apenas duas por evento. Uma dose corresponde a 10 gramas de álcool, o equivalente a uma latinha de cerveja ou uma taça de vinho bem servida.

Fonte: Fonte: Hospital Albert Einstein (SP)



COMO É LÁ FORA. O controle e a punição a motoristas embriagados em outros lugares do mundo 

AUSTRÁLIA - Na saída das boates, é possível assoprar em um tubo na parede para identificar o grau de álcool no sangue em um aparelho. Beber e dirigir é considerado uma vergonha tamanha que deixar alguém sair de casa embriagado para pegar a direção é muito malvisto. A folha de registro de infração da polícia australiana é mais completa do que a brasileira, já que o nível de treinamento do policial de rua ou rodoviário permite maior detalhamento na notificação do acidente, na identificação do que ocorreu.

CANADÁ - Policiais cobram a multa de trânsito na hora. Não é aberto um processo com possibilidade de recurso, como no Brasil. Além da cobrança, o motorista canadense é penalizado no seguro do carro, que no ano seguinte sobe de preço por causa da infração.

SUÉCIA - Em lugares como Suécia, Dinamarca e Noruega, toda viatura tem bafômetro, e qualquer policial rodoviário é treinado para identificar provas que não dependem do aparelho. Um policial que suspeita que o motorista está sob efeito de alguma substância pode solicitar ao condutor que caminhe em linha reta, levante uma perna etc. As provas clínicas são suficientes, pela lei, para notificar o motorista como intoxicado, mesmo que sequer se saiba qual foi a droga utilizada.

ESTADOS UNIDOS - O país conta com as Drug Curts – as Cortes de Drogas. Elas funcionam da seguinte maneira: uma pessoa pega embriagada depois de um acidente é identificada como alcoólatra. Ela recebe duas opções: fazer tratamento ou ir para a cadeia. Para aumentar a pressão sobre o infrator, a cadeia fica ao lado da corte. Durante o tratamento, a pessoa é submetida a exames de urina que apontam se está “limpo” ou recaiu. Além disso, em alguns Estados americanos pessoas com problemas com álcool são obrigadas a ter um bafômetro no carro. Antes de ligar o carro, o motorista deve soprar o bafômetro, senão a ignição não se completa. Durante o percurso, o condutor é solicitado a soprar outras vezes, sob pena de o motor desligar.

JAPÃO - Um motorista embriagado que atropela uma pessoa, causando sua morte, pode ser condenado, de cara, à pena de prisão perpétua. Depois, recursos podem reduzir a condenação, mas o impacto da pena costuma inibir esse tipo de ocorrência por deixar claro que a margem para escapar da punição é mínima.
Fonte: Fonte: Flavio Pechansky, diretor do Centro de Pesquisa em Álcool e Drogas (Cpad)

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